Eu estava em meu segundo ano de faculdade quando me deparei com os escritos de James Baldwin. Seu espírito corajoso, sua voz ressoante, e sua imaginação moral expandiram minha ideia do que era ser negro nos Estados Unidos. Eles me ajudaram a dar sentido à minha própria experiência de crescer na zona rural sulista na década de 60.

Nesse último ano, enquanto viajava pelo país e pelo mundo, o entendimento perspicaz que Baldwin tinha sobre nossas fragilidades humanas – e sobre nosso potencial de transformação – viajou junto comigo. Ele me deu motivos para acreditar

Certamente os eventos desse ano testaram qualquer compromisso que eu tivesse com a esperança e com a crença de que a igualdade é capaz de triunfar sobre a indiferença e a injustiça. Constantemente testemunhamos níveis alarmantes de racismo e intolerância no Ocidente. O sentimento de angústia e impotência com o drama dos refugiados de regiões devastadas pela guerra no Oriente Médio e na África é constante. Em todo o mundo, a violência contínua contra mulheres e meninas, minorias étnicas, comunidades LGBTQ, e outras pessoas vulneráveis são lembretes de que a desigualdade pode ter consequências mortais. 

Nos Estados Unidos, o estado de luto perdura por tempo demasiado. Nos desesperamos com afro-americanos inocentes sendo assassinados pela polícia e com as mortes de oficiais inocentes em Dallas e Baton Rouge. Conforme tentamos mensurar os custos incalculáveis dessa violência – e o trauma que ela propaga – somos chamados ao trabalho com ainda maior urgência para conectar a realidade em que vivemos com as soluções que buscamos.

Conforme confrontamos, e somos confrontados por desigualdades arraigadas e de todos os tipos – conforme buscamos maneiras de entender e lidar –me lembro sempre de uma das frases de Baldwin em particular: “Ignorância, aliada ao poder”, escreveu em 1972, “é o mais feroz inimigo que a justiça pode ter.”

Hoje, estas palavras ressoam intensamente. Em grande parte, isso se deve ao fato de que elas nos forçam a confrontar nossa responsabilidade. Elas exigem que olhemos de perto a nossa própria ignorância e nosso próprio poder. Descobri por conta própria que esses dois atos não são fáceis para nenhum de nós.

Confrontando poder, privilégio, e ignorância

Quando Baldwin trabalhou em sua crítica, o poder ficava quase que exclusivamente nas mãos de homens brancos e ricos e de suas instituições, incluindo algumas daquelas cujo exercício do poder ainda é escrutinado.

Desde os seus escritos, no entanto, nossa definição de poder aliado à ignorância foi expandida, incluindo, agora, também, o privilégio: vantagens não adquiridas ou tratamento preferencial dos quais todos beneficiamos de diferentes maneiras – seja devido ao nosso local de origem, nossa cidadania, nossos pais, nossa educação, competências, identidade de gênero, lugar em uma hierarquia.

O paradoxo do privilégio é o fato de que ele nos protege de experienciar plenamente ou até mesmo de reconhecer a desigualdade, até mesmo quando ele nos dá mais poder para fazer algo sobre isso. Portanto, o privilégio aliado à ignorância se tornou um inimigo igualmente pernicioso, e talvez mais penetrante, da justiça. E embora todos nós tenhamos alguma forma de poder ou privilégio, nós também temos alguma forma de ignorância.    

Tipicamente, em conversas sobre raça, a palavra ignorância é associada à absoluta intolerância – e, sem dúvida, as duas têm relação. No entanto, em minha experiência, a ignorância é um inimigo tão feroz devido à sua presença silenciosa, constante, não reconhecida.  

Sou um homem negro e gay, logo, é de se presumir que eu seja especialmente sensível a essas questões e dinâmicas. Entretanto, no ano passado fui obrigado a confrontar minha própria ignorância e poder, e perceber como eu estava inadvertidamente alimentando a injustiça.

Em junho deste ano, eu e meus colegas anunciamos que o FordForward focaria em romper a barreira da desigualdade. Durante as semanas seguintes, recebi mais de 1.500 e-mails em resposta, a maior parte nos parabenizando. Até que algo aconteceu: fui confrontado com um feedback que ressaltava minha própria inconsciência.

Minha amiga Micki Edelsohn, fundadora de uma notável organização, a Homes for Life,em Wilmington, Delaware, foi a primeira a notar que o FordForward não fazia qualquer menção a uma imensa comunidade: as mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo que vivem com alguma deficiência, sendo aproximadamente 80% destas em países em desenvolvimento. “Eu o aplaudo por combater a desigualdade,” ela disse. “Mas quando você fala sobre desigualdade, como você pode deixar de lado as pessoas com deficiência?”

Muitos outros reiteraram aquela perturbadora mensagem, do ex-governador Tom Ridge e Carol Glazer, presidente do conselho e presidente, respectivamente, da Organização Nacional de Pessoas com Deficiências, a Jennifer Laszlo Mizrahi, presidente da RespectAbility. Aliás, foi Jennifer – hoje uma de nossas mais construtivas e valorizadas parceiras – que, em um e-mail inflamado, me chamou de hipócrita. Foi merecido.

De fato, aqueles que corajosa – e corretamente – levantaram essas complicadas questões ressaltaram o fato de que a Fundação Ford não tem uma pessoa com deficiências visíveis sequer em sua equipe de liderança; que não toma medidas afirmativas para contratar pessoas com deficiências; que não as considera em suas estratégias; que não proporciona a pessoas com deficiências físicas acesso adequado ao nosso website, aos nossos eventos, mídias sociais, ou ao nosso prédio. Nossa sede, de 50 anos, atualmente não cumpre as exigências da Americans with Disabilities Act (ADA)—um marco divisório que fez 26 anos neste verão. E não é preciso dizer: Tudo isso foi desconsiderado pela nossa missão.  

Deficiências, desigualdade, e oportunidades perdidas

O fato é que pessoas com deficiências – sejam elas visíveis ou invisíveis – enfrentam duras desigualdades. Pessoas com deficiências físicas, sensoriais, intelectuais, ou mentais não têm as mesmas oportunidades dos demais. Esta desigualdade é penetrante, e frequentemente se comunica com outras formas de desigualdade já abordadas em nosso trabalho.

Por exemplo, aRespectAbility descobriu que mais de 750.000 indivíduos da nossa população carcerária têm alguma forma de deficiência. Quantas vezes eu pensei, falei, ou escrevi sobre o quanto uma reforma da justiça penal é imperativa no último ano sem ao menos considerar esse aspecto da crise?

Portanto, para mim e para a fundação, minha primeira pergunta era: Como isso aconteceu – como pudemos deixar isso passar? A resposta, simplificando, é poder, privilégio, e ignorância – cada uma delas multiplica os efeitos prejudiciais da outra.

Eu sou pessoalmente privilegiado de incontáveis maneiras – uma delas é que sou fisicamente capaz, sem familiares próximos portadores de deficiências. Em minha vida, nunca fui forçado a pensar se havia ou não rampas de acesso ao entrar em um edifício, ou se um website poderia ser usado por pessoas com deficiências auditivas ou visuais.

Da mesma forma que pedi aos meus amigos brancos que saíssem de sua experiência privilegiada e considerassem as desigualdades enfrentadas por pessoas negras, eu fui acusado de fazer o mesmo com um grupo de pessoas que eu não havia totalmente considerado. E mais, ao reconhecer meu privilégio individual e minha ignorância, também comecei a perceber mais claramente o privilégio institucional e a ignorância da Fundação Ford.

Alguns de meus colegas levantaram a questão dos direitos de pessoas com deficiência em conversas informais e individuais. Outros têm experiências pessoais ou cuidaram de amigos e familiares com deficiências. No entanto, ao longo dos 18 meses em que pensamos no FordForward meticulosamente – um processo extenso e exaustivo – sequer consideramos, de forma significativa, pessoas com deficiências em nossas conversas mais amplas sobre desigualdade.  

Olhando para trás, eu acreditava que nossa instituição – todas as nossas pessoas, todos os nossos processos – serviam como um sistema de freios e contrapesos contra tendências individuais. Eu presumia, sem de fato parar para reconhecer minha presunção, que questões que por acaso fossem negligenciadas por mim, ou sobre as quais eu fosse ignorante, seriam levantadas por outra pessoa – e que havia espaço para levantá-las. Fica claro para mim agora que se tratava de uma manifestação da própria desigualdade que buscávamos erradicar, e tenho profunda vergonha disso.

No entanto, essa experiência trouxe um momento de aprendizado para mim – e para todos nós da Fundação – precisamente porque ela reitera algo importante sobre como a maior parte das instituições trabalha, ou falha, e como podemos fazê-las trabalhar melhor e para mais pessoas.

Isso para não dizer que o sistema de freios e contrapesos não existe. A diversidade de perspectivas dentro da nossa organização e do nosso conselho é, talvez, um dos nossos principais pontos fortes. Ainda assim, como muitos mostraram, essa diversidade tem brechas. Como uma organização composta por indivíduos com diferentes tendências inerentes, não estamos imunes à ignorância. Enquanto cobrimos a ignorância do outro em uma área, podemos simultânea – e inconscientemente – reforçar e até mesmo ratifica-la em outro. Dessa forma, uma voz uma voz ou um grupo ausente pode não só não ser considerado; ele pode até mesmo não existir.

Esse tipo de ignorância institucional é amplo. Nós o vemos quando empresas e organizações oferecem estágios não remunerados, e na falta de diversidade dos conselhos de instituições culturais. Nós os vemos nas falsas escolhas entre imperativos da política pró-vítima e pró-aplicação da lei, e em respostas ao racismo institucionalizado de forma mais ampla. Acho que é justo dizer que essa mente fechada mina toda a filantropia – e dada a nossa cobrança, é inconcebível. Apesar das nossas melhores intenções, quando somos incapazes de lidar com a ignorância dentro de nossas organizações, somos complacentes em permitir que a desigualdade persista.

A boa notícia: É possível mudar. E estamos mudando. Dentre os muitos desafios presentes em nosso mundo e em nosso trabalho, a solução para esse está totalmente ao alcance de nossas mãos. Para tornar nossas organizações mais eficazes, devemos consciente e deliberadamente torná-las menos ignorantes.

Da ignorância ao esclarecimento

E como fazer isso? Como ir da ignorância involuntária à ação esclarecida?

Para os meus colegas e para mim, a transformação começa em reconhecer nossa própria falibilidade e nossas deficiências. Cada vez mais ficamos mais confortáveis com feedbacks desconfortáveis. Ao invés de adotar uma postura defensiva como padrão, estamos nos abrindo ao diálogo e ao aprendizado. Como sabemos, mudar demora, e é possível que o sucesso não seja imediato. Mas temos o compromisso de fazer melhor, e esperamos que feedbacks contínuos nos mantenham honestos.

Neste caso específico, buscamos o aconselhamento de várias pessoas com deficiências, além de defensores dos direitos das pessoas com deficiências, incluindo líderes visionários, como Judy Heumann, o ex-senador Tom Harkin, e nossos colegas da Open Society Foundations e Wellspring Advisors, pioneiros nessa área há mais de uma década. As conversas que tivemos com essas pessoas nos deram um extraordinário insight de como podemos – e iremos – incluir pessoas com todos os tipos de deficiência em nosso trabalho.

Para ser claro, não criaremos um novo programa que aborde deficiências. Em vez disso, integraremos uma perspectiva inclusiva em todas as nossas doações. Como vim a aprender, o mantra da comunidade de pessoas com deficiências é “Nada sobre nós, sem nós” – palavras que soam verdadeiras em todo o nosso trabalho. Afinal, nós tomamos decisões melhores quando ouvimos e damos atenção a importantes contribuições de toda a raça humana. E eu tenho certeza que agregando e aplicando essa perspectiva em todos os nossos esforços – nos questionando sempre: Estamos atentos às necessidades das pessoas com deficiências? – veremos novas oportunidades que de outra forma passariam despercebidas.

Também tomamos ações imediatas e práticas. Para início de conversa, revisamos nossos planos de renovação da nossa sede, garantindo, assim, que possamos ir além das exigências da ADA, e permitindo que pessoas com ou sem deficiências tenham a mesma qualidade de experiência no prédio da Fundação Ford. Também estamos revisando nossas práticas de contratação. E, em breve, pediremos que todos os nossos fornecedores e beneficiários divulguem seus compromissos para com pessoas com deficiências em seus esforços no que tange a diversidade e a inclusão.

Este é um exemplo de como a Fundação Ford tem se esforçado para corrigir uma questão na qual erramos. Mas mais do que isso, é uma chamada para refletir sobre nossa ignorância pessoal e coletiva – e para trabalhar de forma mais consciente para combater essa ignorância, independentemente de sua forma.

Para muitos, isso pode significar reconsiderar a composição de um conselho ou de uma equipe de liderança – ou de reavaliar práticas de recrutamento e contratação que possaminvoluntariamente excluir determinadas pessoas. Para outros, pode significar reavaliar um programa baseado no contexto que o rodeia, ou refletir sobre a linguagem que usamos quando conversamos sobre as pessoas que trabalham conosco. Ou, ainda, pode significar pedir comentários e críticas desconfortáveis, e usá-los como uma oportunidade para o crescimento.

Exigindo mais de nós mesmos, proporcionando mais aos outros

Nós simplesmente não conseguiremos e não iremos derrotar os inimigos da justiça – ou dissipar a ignorância – sem reservarmos um tempo para refletirmos sobre nossas próprias vidas, e sem nos questionarmos: Quem eu estou esquecendo? Quais das minhas suposições são falhas? Quais das minhas crenças são ilegítimas?

Para tanto, precisamos colocar nosso orgulho de lado. Precisamos abrir os olhos, ouvidos, mentes, e corações para abraçar uma visão de desigualdade completa e interseccional. Apenas quando nos permitimos ser igualmente vigilantes e vulneráveis, podemos modelar o tipo de autorreflexão honesta que queremos ver em toda a nossa sociedade.

Se “ignorância aliada ao poder” é, de fato, a maior inimiga da justiça – e o maior combustível para a desigualdade – a empatia e a humildade devem estar entre os maiores aliados da justiça. Este será o trabalho do nosso próximo ano e adiante. É o trabalho de tratar diretamente as causas-raiz e as circunstâncias da injustiça que fazem a filantropia tanto possível quanto necessária.

De minha parte, tenho esperanças. Exigindo e esperando mais de nós mesmos e de nossas instituições, podemos oferecer mais aos outros. Ouvindo mais uns aos outros, conseguiremos pavimentar um caminho mais justo, juntos.